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Maria José Castro

Diagnóstico precoce e acesso a cuidados de saúde nas doenças reumáticas e músculo-esqueléticas. O mundo ideal e a realidade: a minha história pessoal.

Em visita de estudoAos primeiros acordes de “We are the Champions” fingia acordar. Era a primeira mentira do dia. Há horas que me revolteava na cama tentando embalar a dor que acordara antes de mim.
“Estou tão cansada! Hoje não vou trabalhar. É demais, não consigo. Dói-me tudo (até a alma – será possível?), a cabeça está cheia da falta de sono, a vontade partiu – talvez com os sonhos que nem chegaram.” Estes desabafos repetiram-se tantas vezes, sem ser sequer pronunciados, que deixaram de fazer sentido. Entranharam-se na minha rotina, nos meus dias, nos meus lamentos, e caíram em descrença, assim como as dores espalhadas pelo corpo, sem pré-aviso, sem motivo, sem previsão de duração nem de intensidade. Imagino que muitos me achassem uma pessoa entediante porque eu própria estava cansada de mim. O riso partira para parte incerta, o desânimo descambava para depressão, ansiedade e ataques de pânico.
Relaxando com o maridoRecuando no tempo encontro sempre dias em que havia dores e o mais longínquo desses dias surge-me como saído dum oceano de nevoeiro, muito desfocado, pouco preciso, mas trazendo-me, ainda hoje, a angústia de – aos 6 ou 7 anos, não consigo precisar! - sentir dores fortíssimas em todo o corpo que os adultos menosprezavam por não ver razão para isso.
Dizendo isto admito que as incertezas, os medos ou a ansiedade de conhecer um diagnóstico não faziam parte dos meus pensamentos: nunca os meus neurónios se associaram para suspeitar que havia uma doença a partilhar a vida comigo e sempre me convenci que era, unicamente, a minha herança genética e a minha origem alentejana a fazerem-se sentir.
Encantada com floresClaro que esta situação me desgastou, me foi corroendo e instalando um ciclo em que o cansaço e as dores me deixavam deprimida e essa depressão me aumentava o desconforto, o desânimo, a falta de vontade de continuar, enquanto a autoestima, a confiança e a segurança viravam sentimentos de proporções microscópicas.
Talvez fosse guerreira. Se o fui foi a inconsciência que me moveu. Convivia e aceitava as dores como algo de intrínseco. Nunca parei nem me dei o direito de enroscar-me num canto, nunca me permiti pensar em mim em primeiro lugar, provavelmente nunca gostei o suficiente de mim própria.
Até que o corpo se revoltou, assumiu o controlo, tirou-me as rédeas da minha vida e imobilizou-me. No início indignei-me, não podia acreditar que não tinha mão nas minhas decisões, que as dores mandavam em mim e que decidiam o que eu podia - ou melhor, não podia! -, fazer. Foram dez meses de desespero: muitas descobertas de alterações no esqueleto, aqui e ali, mas nada justificando aquele quadro clínico.
Até entrar no consultório certo, fazer os exames necessários e receber o diagnóstico – que embora fosse algo que não se desejasse era um atestado que me permitia pensar que, afinal, havia motivos para as queixas – sofri, tanto emocional como fisicamente. Se tivesse sido mais cedo?
Passeio com a mãe de 82 anos e doente de ParkinsonEvitaria muito sofrimento físico e, sobretudo, poupar-me-ia a queda num pântano de emoções dolorosas em que as dúvidas me faziam desacreditar-me.
Sem dúvida que caminhar no caminho certo - mesmo que cheio de curvas, buracos e pedras – é melhor que deambular sem rumo e sem saber para onde estamos a ir.
É verdade que o diagnóstico de fibromialgia não alegra ninguém mas o alívio de conhecer o inimigo, em vez de lutar de maneira atabalhoada com nada e com tudo, deixa-nos um pouco mais seguros (embora amedrontados) perante o futuro.
“Hoje não consigo evitar: coxeio ligeiramente. Se ao menos as nuvens ameaçassem chuva poderia levar o guarda chuva para, disfarçadamente, me apoiar. Vejo os alunos ensonados, fundindo-se com as paredes ásperas, encolhidos com o frio – alguns com a falta do pequeno-almoço que não estava lá -, torcidos com as mochilas pesadíssimas que os tornam assimétricos.
A preparação das aulas é tarefa diária- Professora, hoje está com dores. É o Yurdney o primeiro a falar. Um cabo verdiano com um coração a condizer com o seu metro e oitenta de altura. Retira-me a pasta da mão. Outro pede-me a chave. Quando entro na sala já a pasta está arrumada na secretária, as luzes acesas, o computador ligado. Já ganhei o dia. E as dores, pelo menos as da alma, começam – agora – a adormecer.”
Agora já me permito queixar quando as dores mordem mais forte, já assumo que tenho uma doença crónica, sem vergonha nem medo de estar a exagerar.
Se o diagnóstico tivesse sido precoce…? Provavelmente teria tomado algumas decisões de forma diferente, teria sido menos infeliz em muitos momentos, teria tratado melhor do meu corpo e da minha cabeça, teria aproveitado o tempo de forma mais proveitosa.
O que faço? Em primeiro lugar tento ser exímia na gestão do tempo. O meu corpo requer tantos cuidados para andar equilibrado que, por vezes, as opções são difíceis: uma aula de Pilates, uma hora de natação, uma consulta que tem vindo a ser protelada, uma sessão de acupunctura ou, simplesmente uma hora no sofá a ler um bom livro?
Fernando Pessoa a minha amiga e euUma mulher com uma profissão que extravasa as horas passadas no local de trabalho e nos acompanha à noite, aos fins de semana - nos momentos que deveriam ser seus -, vê-se a braços com uma tarefa complicada.
O descanso do corpo e da mente são imprescindíveis, mas - muitas vezes -, acabam por ficar para último plano e não se concretizar.
E era isso que necessitava: uma redução no horário de trabalho que me permitisse, sem deixar de estar ativa, conciliar tudo isto com a vida pessoal (o apoio a pais idosos que necessitam de nós, o passeio com o companheiro com quem precisamos de namorar, o jantar com os amigos, a visita a uma amiga que precisa do nosso apoio, a realização de atividades lúdicas que nos descansam a mente). Depois ainda há a formação que os professores devem cumprir (mesmo numa situação desmotivante de carreira e vencimento congelados há anos). É muita coisa. Sobretudo para alguém que tem quebras de dinamismo que a deixam prostrada, que tem dores que a deixam operacional, que tem quebras de humor que a desanimam.
Depois faltam os apoios monetários. É preciso pagar as horas de natação, as sessões de Pilates e de acupunctura; temos de pagar as consultas, os exames, a fisioterapia…
Conciliar todas as tarefas, gerir a economia doméstica e tentar alcançar algum equilíbrio é uma tarefa titânica.
Em Portugal, com a profissão de professor e a doença ao ombro que nem a mochila pesada dos meus alunos… é quase impossível. O equilíbrio torna-se precário, e, por vezes, a vontade de desistir assoma e tenta instalar-se. O segredo? Travar uma batalha de cada vez… talvez um dia se ganhe a guerra.

Maria José Castro, 2016
56 anos, Fibromialgia