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Ensaio de Maria José Castro

“2043: a minha visão de um mundo ideal para as pessoas com uma doença reumática ou músculo-esquelética”

Maria José CastroAgora que estou instalada na doença percebo que o pré-diagnóstico é, provavelmente, a fase mais angustiante. É claro que o relatório médico não afugenta as dores nem as apazigua, mas antes deste: é viver entre o real e o imaginário, é sentir-se à deriva, é questionar-se constantemente sobre a sua própria lucidez. Agora dói-me aqui, mais logo dói-me ali, amanhã terei dores? Que dores? Em que parte do corpo? Sabemos que há algo emergente, sentimos que ocorrem mudanças, mas desconhecemos os fenómenos, nem sabemos sequer como nos queixar. Nem quando tudo começou. É tudo tão difuso e variável. É o ovo da serpente a germinar: o embrião está lá, mas não se vê.
Foi assim durante anos. Por vezes fartava-me de mim própria: ora era a depressão, ora surgiam tendinites, dores lombares, mãos inchadas, corpo rígido (sobretudo ao acordar),… Os tratamentos? Muitos, inventei-os eu! Percebi que o duche de água a ferver (como costumo dizer a brincar) era milagroso; os analgésicos atenuavam e os ansiolíticos também ajudavam. Quando as situações se agravavam recorria aos médicos que analisavam, pontualmente, os sintomas que lhes expunha. Não apresentava tudo, é verdade: por ignorância da relação que tinham, por pensar que era um exagero expor um rol de queixas. E então diagnosticavam e prescreviam. A coluna está mal: tem várias hérnias discais; a profissão é desgastante: muito stress, muita ansiedade. Até que descobri a acupunctura e um médico extraordinário que relacionou tudo e referiu dores fibromiálgicas e a rebeldia das mesmas aos tratamentos. Mantinha-me à tona das dores agarrando-me às sessões de acupunctura, quando piorava. Mas o diagnóstico… não o levei muito a sério. Também, não tinha tempo: para estar doente, para fazer exames, para fazer ginástica e natação, para repousar. Até há dez meses atrás. Aí tive o tempo todo da minha vida! O meu corpo gritou: basta, é preciso tomar medidas! Foi apenas há alguns meses mas agora parece que foi noutra era geológica.
Uma permanência em casa requer relatórios da medicina convencional, exames, provas concretas. Passeei-me, coxeando, por sucessivos consultórios onde médicos de diversas especialidades apresentavam opiniões, pediam exames, prescreviam medicamentos. As dores? Estavam por todo o lado, resistiam aos anti-inflamatórios, acompanhavam-me mais que a minha sombra… dormiam comigo, quando eu dormia!
Quando entrei no consultório do reumatologista, e ele entrou na minha vida, percebi que estava ali alguém que entendia que me estava a afogar em sofrimento, senti que me ia deitar a tábua de salvação e, mesmo continuando num mar revolto de dores, comecei a vislumbrar um porto para onde rumar.
É certo que chegar a esse porto seguro não foi fácil.
Nessa fase consciencializamo-nos que a doença está em nós como o nosso pensamento, a nossa pele: impossível de dissociar do nosso ser, da nossa vida; o outro obstáculo – não menos azedo –, convive connosco em casa, na escola, no emprego, na rua: são os nossos familiares, os colegas, os amigos,… os transeuntes com que nos cruzamos e com quem partilhamos a fila do autocarro, a espera na repartição de finanças, os bancos do metro.
Na crise o olhar denuncia-nos, as olheiras insinuam-se, o caminhar altera-se, o humor degrada-se: mas estas escondem-se nos recantos das nossas casas, dos nossos quartos e, muitas vezes, no esconderijo dos cobertores. Quando acalmam, não deixam pegadas nem impressões digitais, e, muitas vezes, a seguir deparamo-nos com o reforço… negativo: psicológico, de dúvida, intimidante, esmagador e desmotivante. Os olhares de soslaio, a suspeição, infligem dor – quase tão intensa na alma como as outras o são no corpo.
Maria José CastroRetomar a vida activa tem de integrar um comportamento seguro e doseado. Ao tentar dissimular o mau estar e o sofrimento, ainda – e sempre – persistentes, confrontamo-nos com os comentários, por demais conhecidos e muitas vezes repletos de sarcasmo, que nos atribuem óptimo aspecto, atitude relaxada de quem descansou e recuperou energias. Mas não é a piedade que se deseja, essa não é tratamento; devemos regressar ao quotidiano com a atitude que para nós seja a mais confortável, digam lá o que disserem.
Tudo isto me leva a crer que a primeira, enorme, ajuda será a nível da divulgação destas doenças: os sinais e sintomas incipientes para quem vê mas tão violentos para quem sente. Se por um lado a informação leva à solidariedade e à compreensão de quem nos rodeia (cruciais num processo de doença – sobretudo se a mesma se insinua, mordaz, sem mostrar rastos), por outro pode impedir que muitos se arrastem anos a fio pela vida, engolindo lamentos e comprimidos de forma aleatória, nos intervalos dos períodos de algum bem estar.
Claro que quando se ouve o veredicto é terrível: lombalgia crónica com radiculopatia, osteoartrose das mãos com redução da função preênsil dos dedos, fibromialgia (persistente e rebelde às terapêuticas! já devia saber!); necessidade de repensar o modo de vida, evitar o stress, fazer exercício físico regularmente, repousar o suficiente, fazer a medicação, uff! Impossível de conciliar! Aí percebemos que a evolução foi por crises, cada vez mais estreitas, que desperdiçamos tempo de terapia adequada. Corremos para a internet, tentamos saber mais, a autocomiseração invade-nos! Mas depois – a pouco e pouco - começamos a cumprir tarefas, a sentir alívios, a conhecer melhor os alertas, a reflectir… e a mudar.
A permanência em casa deixou-me o tempo, que eu não tinha, para pensar, escarafunchar interesses, algo que me deu prazer. Eu: (re)descobri a escrita. E foi um bálsamo maravilhoso: um calmante para o espírito, uma forma de me dedicar à mudança pacificamente.
Maria José CastroAgora estou pronta para recomeçar. Porque “melhor é impossível”… vamos em frente. O que preciso? Daquilo que a minha escola, os meus colegas, família e amigos estão prontos para me dar: apoio e compreensão, alguma flexibilidade de horários que me permita fazer exercício, acupunctura, fisioterapia, regularmente. É disto que preciso.
Para além do médico disponível, atento, seguro e competente, necessitamos que a sociedade nos facilite, um pouco, as rotinas. A maleabilidade do horário de trabalho (ou alternativas ao mesmo, se necessário e possível) permitir-nos-ão frequentar as actividades que necessitamos para o corpo - tanto como oxigénio para as células. Por outro lado, o facto de conseguirmos conciliar horários libertar-nos-á dum stress desmesurado, assíduo e causador de crises: ou corremos de sítio em sítio para conseguir cumprir ou resolvemos não correr e a ansiedade dispara porque sabemos o erro que estamos a cometer.
Se é verdade que, em muitos casos, não há necessidade de ficar restrito a uma vida entediante e inútil, em casa, então há que mudar opiniões (e isso depende do conhecimento). Esperemos que a Ciência saia dos laboratórios, dos gabinetes, dos consultórios e vá ao encontro dos governantes, dos que ocupam os topos das hierarquias sociais, dos cidadãos comuns.

Maria José Castro, 2013
53 anos, Fibromialgia