Mariana Carvalho
Desde muito pequena que convivo com a Dor; como atleta de alta competição, essa experiência é considerada “necessária” e decorrente de todo o esforço realizado para alcançar os resultados. A convivência com a Dor e a busca de métodos para a sua gestão levou-me a tirar a licenciatura em Fisioterapia, que terminei com sucesso.
Um dia, a Dor começou a ser diferente; veio acompanhada de rigidez e de repente não era capaz de virar a cabeça, tal era a dor na cervical. No espaço de dois meses, as minhas mãos começaram a deixar de funcionar de manhã, devido a dores excruciantes e uma rigidez aflitiva, que me impediam de vestir, cozinhar, conduzir, escrever e de treinar. Com um Campeonato do Mundo à porta e avaliações práticas da licenciatura, sentia o meu mundo a desabar.
Participei no Campeonato do Mundo com dores insuportáveis, com muita medicação que pouco ajudava e sem diagnóstico. Não sei como consegui fazer o que fiz na competição, mas foi das minhas melhores prestações e trouxe uma medalha para casa.
Após a competição, depois de toda a adrenalina se desvanecer, veio o terror. Dizer que os meses que se seguiram não foram fáceis é um eufemismo. É difícil pôr em palavras aquilo que senti na altura, com dores incapacitantes, impedida de treinar, com uma dificuldade imensa em estudar, em pegar numa caneta, em estar sentada ao computador, incapaz de realizar as técnicas de fisioterapia necessárias para passar nas avaliações.
Apesar de tudo, tive sorte. Em menos de dois meses fui diagnosticada com Artrite Reumatoide e calhou-me um médico absolutamente incrível, que teve em conta os meus sonhos e a minha vontade.
Ainda assim, não é um diagnóstico fácil: dizer a uma rapariga de 21 anos que tem uma doença que afeta as articulações, principalmente as mãos, e que passa de ser saudável a ter de andar com caixas de medicamentos atrás é algo extremamente difícil de digerir. De repente, os meus objetivos como ginasta, desapareceram. De repente, o meu sonho de ser fisioterapeuta pareceu-me impossível, uma vez que não compreendia como poderia ser fisioterapeuta se as minhas mãos não funcionavam.
Como ginasta estou formatada para não desistir. Tive sempre dois objetivos em mente: regressar à alta competição e terminar o curso com sucesso.
O desporto é o que me define e o que me faz sentir bem, desafiada e motivada; comecei a perceber, empiricamente, que fazer exercício físico diminuía as minhas dores e rigidez, e inscrevi-me no ginásio. Aliado aos meus conhecimentos em Fisioterapia, comecei a voltar à forma, perdi o peso que tinha ganho, recuperei mobilidade nos punhos e cervical, ganhei força e melhorei a minha aptidão cardiorrespiratória. No entanto, o que eu queria mesmo era regressar à minha atividade desportiva, a ginástica. Falei com o meu médico que, após visitar o meu treino e medir os prós e os contras, concluiu que o impacto que a ginástica tinha na minha saúde mental era o fator mais importante a valorizar naquele momento. Definimos alguns sinais de alarme e combinamos que, se algum surgisse, parava de imediato.
O meu maior desejo era regressar à normalidade. Voltar a ter o controlo da minha vida, sem dores, sem planos B. No fundo, regressar à ginástica era ver uma luz ao fundo do túnel que significava que eu era “normal” outra vez. Essa era a minha maior esperança – a remissão.
Com muito esforço e ainda mais vontade, participei em vários campeonatos e voltei a apurar-me para um Mundial. Infelizmente, o processo foi extremamente doloroso e, a certa altura, no meio de lágrimas que teimavam em surgir devido às dores intensas, tomei a decisão de terminar a carreira, pelo bem da minha saúde e futuro.
Neste momento decidi focar-me na minha carreira profissional. Em breve terminaria o curso e, apesar de não saber bem por onde começar, eu tinha uma ideia fixa: quero ajudar pessoas com este diagnóstico a regressar a uma vida normal.
Estudei muito, pesquisei, informei-me e contactei com vários profissionais de saúde com o intuito de aprender mais acerca das doenças reumáticas e do papel da fisioterapia na sua gestão. Apercebi-me de que, em Portugal, no que diz respeito à Artrite Reumatoide, o conhecimento dos fisioterapeutas é escasso.
Aqui surgiu uma oportunidade. Decidi que queria continuar a estudar e inscrevi-me no Mestrado de Fisioterapia em Condições Músculo-esqueléticas, com o objetivo de aprender mais e mais para criar um projeto que permitisse a pessoas que passaram o que eu passei terem melhor qualidade de vida e quase esquecerem que têm uma doença potencialmente incapacitante.
O projeto é ainda um embrião, mas tenho esperança que se torne um programa reconhecido e que permita aos 0,7% da população portuguesa portadora de Artrite Reumatoide viver uma vida ativa, saudável e feliz.
Cada vez existem mais possibilidades de tratamento farmacológico para esta doença, e cada vez mais eficazes; mas também existe tratamento não-farmacológico, complementar, que depende unicamente de cada um e que tem benefícios em todos os domínios. O exercício é um deles, e a adesão a um estilo de vida que inclua exercício leva a que cada pessoa tenha mais controlo sobre si e sobre a doença; permite uma gestão da doença e dos flare-ups que inevitavelmente vão existir.
Acabei por voltar atrás na minha decisão de terminar a carreira e, neste momento, apesar de não estar 100% sem dores, sinto-me bem, sinto-me forte, e a fazer ginástica com uma qualidade que nunca tinha tido antes. Os últimos três longos anos foram passados sempre ao lado da minha família, namorado e treinador, que fizeram de tudo para que eu me sentisse apoiada, para que nunca me sentisse sozinha e que tentavam aliviar a minha dor física e emocional da melhor forma que conseguiam; em adição, tive um médico que, para além de médico, é uma pessoa empática e dedicada, e se não fosse ele, não sei qual seria o meu estado neste momento.
Como qualquer doente com o mínimo de esperança, tenho a expectativa de que um dia exista uma cura para esta doença que afeta tanta gente e de forma tão invisível; até lá, quero ter um papel na sociedade no sentido de minimizar as consequências da Artrite Reumatoide e de capacitar as pessoas para a auto-gestão da condição, de forma a promover uma vida longa, saudável e feliz a todos os doentes com esta condição. Quero fazer a diferença.
Mariana Carvalho, 2021
23 anos, Artrite Reumatóide
O meu nome é Mariana Carvalho, tenho 23 anos e sou Fisioterapeuta. De momento habito com os meus pais, e sou filha única. Nasci em Lisboa e cresci em Carcavelos, onde continuo a morar e onde pretendo ficar! Desde pequena que faço desporto e isso tornou-se o meu maior passatempo; para além disso, gosto muito de ler, de passear e viajar e de fazer crochet, que aprendi durante a quarentena e fiquei viciada! Atualmente estou a fazer Mestrado e, durante a minha pesquisa para um dos meus projetos, deparei-me com o Prémio Edgar Stene na página da EULAR. Gosto muito de escrever, apesar de nem sempre conseguir exprimir totalmente o que sinto no papel, e o tema proposto refletia os meus últimos anos com o diagnóstico de Artrite Reumatoide e os desafios que a vida colocava. Como tal, pensei que seria desafiante escrever a minha história!