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Inês d'Almeida

Ines d AlmeidaO despertador toca. São horas de ir.

A cabeça lateja, como se tivesse dormido com a touca de natação. A dor alastra para o pescoço e cintura escapular, os músculos cervicais a enrijecer parecendo que a atmosfera tem um peso esmagador. Os ouvidos assobiam imitando uma cigarra; se os tapar, em desespero, lá está aquele som, dentro da minha cabeça, a estragar-me os momentos que para os outros são de silêncio.

Levanto-me da cama. Se me deixo ficar, cada vez me custa mais. Não cedas à dor, não cedas à dor, não cedas à dor.

F-I-B-R-O-M-I-A-L-G-I-A. Com os meus 19 anos, o médico Reumatologista deu-me o diagnóstico que finalmente encaixou as peças da minha sintomatologia. Já suspeitava, no fundo. Enquanto estudante de Medicina, sei que poucas patologias se fazem acompanhar de um leque tão heterogéneo de sintomas com exames auxiliares sistematicamente normais.

Naturalmente, a minha introversão e formação académica influenciaram a comunicação com a classe médica. A minha tranquilidade durante um Estágio contrasta com a inquietude de quando entro num gabinete médico e me sento do outro lado da secretária. Involuntariamente, junto as mãos na linha média, em frente ao peito, apertando-as uma na outra. Eu, futura médica, emanando o sinal unívoco de que comunicar comigo enquanto doente não será tarefa fácil. Irónico, mas não o faço propositadamente. Os médicos são os piores doentes.

Tudo começou com cefaleias de tensão, que vários médicos Neurologistas tentaram medicar, em vão. Após ingressar na faculdade, pioraram consideravelmente. Stress, pensei. Já vira que chegue do meu curso para conhecer alguns dos piores cenários, mas não o suficiente para expô-los; achava-os improváveis e temia dramatizar a questão – em maior ou menor grau, todos podemos sofrer de cefaleias, certo? Se considerasse todas as etiologias possíveis, endoideceria. Não queria parecer hipocondríaca. Partilhar abertamente este pensamento com o médico teria provavelmente quebrado o gelo, mas infelizmente retraí-me.

Minto. Stress era a resposta que eu maquinalmente esperava ouvir – porque ninguém quer ouvir o pior e porque parti do princípio que não seria nada de mais. Sucedendo-se os exames complementares normais, o médico Neurologista também não antevia problemas. Com a minha idade, saudável até à data, seria de esperar, argumentou. Ansiedade, perfecionismo, vício em trabalho…o diagnóstico veio nestes moldes.

O que eu pensava, pelo contrário, é que se o stress era a causa, a situação já tinha excedido os limites. Com muita pena minha, não consegui manifestar esta ideia tão cedo. Nem queria matutar demasiado nela, eu penso demais.

Mas a cefaleia, o sintoma que impulsionou o Big Bang subsequente, permanecia, na loucura da pandemia SARS-coV-2 que reduziu as consultas a metade e escorraçou as outras patologias para segundo plano. A rigidez muscular foi alastrando lentamente para a mandíbula, pescoço e membros superiores. Com ela surgiram sintomas depressivos, agora seguidos pela médica Psiquiatra.

Como queixar-me de cefaleias e contraturas musculares perante um médico que trata doenças severas do Sistema Nervoso Central? Como vieram os sintomas depressivos em pezinhos de lã? Como explicar a ineficácia dos medicamentos? Questões que ribombavam na minha cabeça como trovões, iluminando o receio de me sentir incompreendida perante profissionais que trataram de casos bem mais intrincados, pensava eu.

Batalhar diariamente contra o corpo não deixa ninguém feliz. Batalhar contra a mente, ainda menos.

Eu não queria passar pela disforia que antecede a adaptação ao antidepressivo. Não queria experimentar mais fármacos. Não queria ver-me do outro lado da secretária num gabinete da ala psiquiátrica. Não queria abrandar o meu ritmo.

Aqui está um exemplo de resistência à terapêutica. Não me envergonho, nem me orgulho; não existem dois doentes iguais, e se um revela demasiada tenacidade, a outro custa-lhe ser pró-ativo na sua recuperação. Se me dizem que sou uma doente difícil, concordo sem ripostar. Se afirmam que a imposição interfere com a comunicação entre médico e doente, idem. Não podemos dissociar-nos da nossa personalidade e dos nossos conhecimentos, isso é certo. Mas, enquanto doentes, não esqueçamos que nos compete também a nós cultivar uma relação saudável com os profissionais de saúde. Temos o direito a discordar da sugestão do médico, e vice-versa. Como num negócio, o importante é respeitar a opinião do outro e chegar a um consenso. Civilizadamente, de preferência.

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Com o tempo, o meu caminho foi-se endireitando. Como o de todos nós, doentes reumáticos. Se não for hoje, é amanhã.

Se cedi em todas aquelas exigências? Não, tive direito a contestar. Se levei sempre a minha avante? Também não, nem seria boa ideia.

Posso não ter conseguido de início estabelecer uma boa comunicação, e ainda hoje estar a trabalhar nisso. Porque é humano compreender ???? quando o outro pretende transmitir ????. Não temos o poder de leitura da mente, mas isso não exige transformar o consultório num campo de batalha.

Posso até mesmo ter muitos pensamentos e receios que ainda não fui capaz de partilhar, mas sei que conseguirei um dia. Compreender que efetivamente a distância entre o médico e o doente pode parecer (mas não é!) avassaladora. Olhando bem, não passa da medida da largura da secretária.

Foi esta viagem que me levou ao meu diagnóstico. Faz parte da história de quem eu sou e de quem quero ser: uma profissional de saúde que revela a humanidade dos médicos e encoraja os doentes a comunicar sem receio do julgamento. Não há questões estúpidas, disse-me uma professora da faculdade.

Fibromialgia, explicou-me finalmente o médico Reumatologista. Estava do outro lado da secretária. Mas, talvez pela primeira vez, apercebi-me de como estava, inequivocamente, perto.

Inês d'Almeida, 2022
19 anos, Fibromialgia