icon-facebook  icon-youtubeicon-instagramicon X site

 

maria-carmo-vieira

Em que é que a Doença Reumática modificou a minha vida?

Maria do Carmo Vieira
XV Fórum de Apoio ao Doente Reumático
19 e 20 de Outubro de 2012

Partindo do título da comunicação que aceitei fazer, com interesse e gosto, é meu objectivo apresentar-vos o que penso a esse propósito, estando convicta, pela experiência de outros doentes e pela minha própria experiência, de que a doença só pode ocasionar uma benéfica alteração, no quotidiano da Vida, se aprendermos a manter um diálogo interior constante, no qual intervirão factores diversos. Só assim, parece-me, conseguiremos a Força necessária que nos impedirá de cair na paralisante piedade por nós próprios ou pelos outros. Com efeito, nenhum de nós precisa de um discurso de piedade ou do olhar compassivo de quem quer que seja. Exigimos apenas viver com a dignidade que nos confere a nossa própria Condição Humana.

Um dos primeiros ensinamentos que recebi na infância sobre a Vida, e que se mantém sem mácula, surgiu de uma história, contada pela minha avó materna, intitulada «O Rei dos Peixes», na qual, a dada altura, uma menina, por ter deixado inadvertidamente passar um prazo, teve de usar e romper umas botas de ferro para poder regressar de novo ao palácio do «Rei dos Peixes», onde vivia feliz. Foi essa história, metáfora da compensação do esforço, e tão intensamente vivida e sofrida por ansiarmos que as botas, finalmente, se rompessem um dia, depois de tantas e tantas caminhadas, em que se multiplicavam obstáculos e se fortalecia a paciência, que nos preparou para inúmeros momentos difíceis da Vida, ensinando-nos que o absurdo do êxito oferecido é um traiçoeiro cântico de sereia do qual temos de nos defender.

Essa experiência primeira, sentida inicialmente de forma protegida pela presença da contadora de histórias e, mais tarde, interiormente invocada pelo frente-a-frente com os problemas reais, foi-se fortalecendo ao longo do tempo, nele incluído o encontro com a Arte, (1) interpretada como tudo aquilo que nos ilumina e nos leva a reflectir sobre situações imprevistas que se nos deparam e as quais, precisamente pelo modo como surgem, exigem um esforço que não esperávamos ter de fazer. Uma dessas situações pode ser a experiência súbita de uma doença, contra a qual temos, muitas vezes, de lutar não lhe dando tréguas, ou de aprender a compreendê-la e a conviver com ela para atenuar o mal-estar físico e interior que sentimos.

Estranhamente, pode ser através da doença, algo que nos magoa, que conseguimos vislumbrar o instante que nos leva a uma descoberta, que não só nos ajudará a partir desse momento, como nos reconfortará espiritualmente. E, de novo, a Arte, podendo surgir numa quase simbiose com o divino, intervém e permite que encontremos forças que até aí desconhecíamos ou pensávamos não ser capazes de criar. (2) Passando por este estádio, damo-nos efectivamente conta do milagre que representa a Vida e da imperiosa necessidade de resistir e de lutar, unindo esforços para ajudar a minimizar os efeitos da doença sobre nós e sobre os outros, e, simultaneamente, para alertar o Poder para o facto de ser imperioso ouvir os cidadãos, e no presente caso, as Associações de doentes, antes de definir, no interior de um gabinete, as medidas que sobre aqueles recairão e que teoricamente, e numa falsa bondade, são apresentadas como sendo em sua defesa. Nesse sentido, apelo aos associados da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas, a todos os que integram profissionalmente a área da Saúde, a doentes e seus familiares que nos ajudem a divulgar os Núcleos recentemente criados da Síndrome de Sjögren e de Osteoartrose, integrados juridicamente na Liga, de forma a que juntos possamos encontrar resposta para muitos dos problemas levantados por estas duas doenças crónicas de foro reumático.

O caminho, sabemo-lo, será duro, mas a nós caber-nos-á palmilhá-lo com persistência e construí-lo para nosso bem e, consequentemente, dos vindouros.

NOTA: Durante a comunicação, foi projectada e analisada a obra do pintor belga Margritte, cuja leitura associei, pela minha experiência de infância, à dureza da vida, aos inúmeros momentos em que somos obrigados a «calçar umas botas de ferro», reprimidos que nos encontramos pela uma imensa variedade de situações sejam elas de índole política, religiosa, social, pessoal ou de saúde.
Foi igualmente ouvido o tema musical do filme «A Missão», de autoria de Ennio Morricone, narrativa sonora em cuja leitura reconhecemos diferentes matizes da nossa experiência quotidiana, num envolvimento de sentimentos que traduzem alegria, dúvida, coragem, angústia, resignação, nostalgia e o desejo imenso de cumprir o que em sonho ansiamos.

1. Explicação da pintura «O Modelo Vermelho» (1935) de Margritte (1898-1967)
2. Exemplificação com o tema musical do filme «A Missão» (do realizador Roland Joffé, 1986), de autoria do compositor e maestro Ennio Morricone