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Maria José Castro

Um passo à frente da doença

RetratoA fibromialgia é uma doença cínica, persistente e muito inconveniente. Aparece, instala-se e acompanha-nos sempre – à luz do dia ou na escuridão da noite –, incomodando-nos quando quer, sem se preocupar se o momento é apropriado, e sem o mínimo sentido da oportunidade (é verdade que se não fosse tão despudorada a impor a sua presença nunca seria convidada já que ninguém lhe dedica estima). Ataca, pela calada, os músculos ou o cérebro, sem cerimónia nem parcimónia.
No entanto, apesar desta desfaçatez, não se mostra nunca nem torna pública a sua chegada. Simplesmente aparece, clandestina e irreverente.
Não sabemos onde começou, porque começou ou quando (e onde) vai desferir um novo golpe; não lhe conhecemos a forma nem o modus operandi. E, assim, sub-repticiamente, vai dominando o nosso corpo com a segurança do que é inatingível.
A dada altura faz parte de nós como um sentimento, malévolo, algo de muito íntimo que podemos descrever, atribuir um valor – numa escala pouco fiável –, exteriorizar em expressões de dor ou de infelicidade, mas nunca conseguiremos mostrar, realmente, aos outros: não se pode fotografar nem é detetável num qualquer teste laboratorial. Ora isto, numa época em que as Ciências Exatas dominam as mentes, é mau para o hospedeiro desta síndrome.
Se o nosso inimigo não se mostra como o podemos expor e erradicar? Se não lhe conhecemos um padrão de atuação qual a melhor estratégia para o combater?
Foram estas as perguntas que me atormentaram, de início, nas frequentes noites de insónia ou nos períodos, forçados, de pausa a meio da rotina diária (ou de inatividade, imposta, de vários dias).
E a resposta começou a construir-se, sempre a mesma, e cada vez mais clara: preparar-me, o melhor possível, para o ataque e fazer uma investida mais rápida que a da doença. Sempre ouvi dizer que o ataque é a melhor defesa.
A companhia dos amigos e fundamental no meu equilibrioDaí até estabelecer regras foi um passo, nada curto, é certo, mas ainda assim deu para subir um degrau. Comecei por avaliar a forma como me atacava e cedo percebi que nos meus pontos fracos estavam os momentos áureos da doença. O meu cérebro joga em duas equipas e aproveita as minhas fraquezas, entregando-as de bandeja, para que a fibromialgia as use na marcação de pontos que me derrubam.
Por isso, pensei, tenho de estar sempre um passo à frente da velhaca. Descobrindo os momentos de maior debilidade física, ou emocional, poderei tomar medidas para evitar a instalação dos sintomas incapacitantes.
E assim as regras de ouro foram surgindo: essenciais para que a minha vida avançasse de forma equilibrada.

Regra número 1 – Realizar, com o meu médico, um trabalho colaborativo que torne a nossa equipa muito forte:
- descobrir as drogas certas para proteger e reforçar os pontos débeis do meu corpo – ele pesquisa e eu testo –, até acertarmos com a fórmula ideal;
- cumprir as suas prescrições, escrupulosamente, e os conselhos com a máxima seriedade.

Conhecer novos lugares visitar museus e exposicoes ajudam-me a manter o gosto pela vidaRegra número 2 – Aliciar o meu cérebro a ficar do meu lado em vez de o deixar, livremente, escolher a equipa:
- ocupar e exercitar a minha mente para que não se deixe arrastar nos meandros depressivos que a doença tanto gosta;
- usar a doença como argumento para me dedicar a tarefas que me dão prazer – e que encantam os meus neurónios, aliciando-os a participar – mas que, por falta de tempo, antes eram renegadas para segundo ou terceiro plano.

Regra número 3 – Preparar o meu corpo para as investidas, quase sempre, inesperadas:
- fortalecer os meus músculos com exercício apropriado tornando-os capazes de maior resistência às tentativas maldosas de os tornar rígidos e doridos.

As minhas gatas sao uma presenca amiga em todos os momentosRegra número 4 – Nunca entregar os pontos:
- não deixar de realizar, seja o que for, por causa da sua existência mas antes persistir, e adaptar, para conseguir concretizar os meus objetivos;
- sobretudo NUNCA usar o argumento “eu já não posso meter-me nisso” para fugir a uma atividade: enfrentá-la, estudá-la e realizá-la – nem que seja apenas a 10% do que era suposto;
- prever situações mais suscetíveis às crises e antecipar a defesa.

Regra número 5 – Usar o bom humor como aliado indispensável:
- menosprezar a doença no dia a dia impedindo-a de se tornar o centro das atenções e, assim, ganhar terreno;
- brincar com ela, mais do que ela brinca comigo, contrariando a tendência dramática que imprime aos jogos que faz com o meu corpo;
- rodear-me da família, dos amigos, dos bons colegas e daqueles que me fazem rir, sentindo-me parte de um grande pelotão ao invés de me tornar um alvo fácil, isolando-me;
- rir todos os dias assumindo o riso como o alimento da alma.

Regra número 6 – Fugir, sempre que possível, das situações causadoras de stress, das ideias negativas, dos momentos deprimentes:
- evitar a todo o custo conflitos, discussões e ambientes confusos e barulhentos;
- afastar-me das pessoas pró-negativo, que vêm tudo – sempre – negro e sem solução;
- preferir os livros e os filmes de humor saudável ou que apresentam resolução para os problemas numa perspetiva pró-ativa;
- deixar seguir, sem me imiscuir, os acontecimentos tristes a que me posso furtar porque a minha intervenção não é imprescindível.

Rir e um remedio excelente para a alma e para o corpoNão sei ao certo se cumpro, sempre, todas estas minhas regras, mas acho que não. Sinceramente? Tenho a certeza que não! Porquê? Porque às vezes desespero, outras vezes choro e outras ainda inundo-me em autopiedade. Mas, logo a seguir, evito recriminar-me e penso que sou humana e tenho direito a falhar. E penso, sobretudo, que as normas existem para nos orientar e nos dar um rumo mas que as exceções confirmam as regras. Portanto… vamos lá viver e aceitar as nossas doenças, reumáticas ou músculo-esqueléticas, como companheiras (indesejáveis, bem sei) indissociáveis de nós próprios.

Maria José Castro, 2015
55 anos, Fibromialgia