Margarida Fonseca Santos (2021)
HOJE
Olho-me ao espelho. Deixei de carregar a tristeza antiga nos olhos. Então, por que sinto esta desilusão?
Vou até ao sítio onde agora trabalho. Sento-me à secretária. A agenda, sempre muito cheia de afazeres, parece-me agora bem diferente. Tarefas várias amontoam-se com horas marcadas e setas a lembrar as prioritárias sem tempo específico. Os meus dias mudaram tanto durante a pandemia.
Mas aquela desilusão... gostava de a saber apagar. Sorrio. É uma desilusão com retroativos, bem sei, e vem com juros, juros feitos de memórias de outros dias.
Deveria ser capaz de me perdoar. Os anos anteriores, depois de o diagnóstico desfazer as dúvidas sobre se estaria a inventar dores, tinham sido penosos, num crescendo que terminaria de repente, naquele confinamento. Soube da justificação para as dores, para as causas e efeitos dos esforços, das noites a atravessar o corredor para diluir o sofrimento, dormindo em excertos de sono conturbado. Soube qual a doença: espondilartrite indiferenciada, a que se juntavam outras patologias, artroses, discos herniados e mortos.
Inscrevi-me na Liga Portuguesa Contras as Doenças Reumáticas e passei a ter um apoio fundamental: informação credível no site, amigos à distância de um telefonema, conselhos de quem passa pelo mesmo, compreensão. E quando me disseram que precisava de parar o que não devia fazer, ignorei. Porquê? Não sei. Talvez falta de coragem.
Continuei a fazer a minha vida como se nada se passasse. Recordo agora os momentos em que, depois de dar formação todo o dia, ou de ir a escolas falar da minha paixão pela escrita, entrava no carro e um nó me apertava a garganta. Guiava por vezes com uma cortina de lágrimas que precisavam de ser gastas antes de chegar a casa. Queria que a família se mantivesse feliz, sem as minhas dores a tingirem as conversas à mesa, os momentos mais especiais.
Observo a mesa de trabalho. Tento começar, não, ainda não. Preciso de deitar cá para fora a mudança e aquela desilusão. Agora, trabalhando à distância, compreendo como posso continuar a ser criativa, a dar formação, a falar com alunos. Posso continuar com a minha profissão na segurança do trabalho online. Posso continuar sem o filtro de dor entre mim e aqueles com quem estou. Também tenho tempo para o exercício físico e minutos de descanso se a dor ataca. Num momento em que o mundo sofre um duro golpe, recebi um presente: a possibilidade de viver sem tanto sofrimento; e um presente em que faço melhor o que sei.
Aprendi a usar novos programas que me permitem chegar aos outros, produzir novos conteúdos. Faço filmes, padlets para as aulas, conto histórias em gravações, tenho aulas de tai-chi online e encontro-me com quem partilho projetos assim, à distância de um clique.
Os comentários que recebo nas videoconferências fazem-me sorrir. Pareço mais luminosa, dizem, rejuvenescida. Agradeço. Agradeço a lição dada pela pandemia, mostrando-me como o trabalho à distância é possível, eficaz, tão mais simples para alguém com o meu quadro clínico, e isso é encantador.
Perdoar, sim. De nada vale sentir aquela desilusão por não ter sido capaz de agir mais cedo. Fiz o melhor possível. A solução de hoje tantas vezes sugerida. Nunca experimentada. Por medo. Que medo? De parecer cobarde? São tempos já passados.
Volto a sorrir. Abro o computador, ligo-o. O fiel amigo dos meus dias. Começo. Posso trabalhar melhor e sofrer muito menos. Sim, sei apagar a desilusão. Ficar na luz.
Margarida Fonseca Santos, 2020
60 anos, Espondilartrite indiferenciada
Margarida Fonseca Santos nasceu, cresceu e vive em Lisboa. Foi-lhe diagnosticada, para além de artroses e de discos mortos na coluna, um deles herniado, uma espondilartrite indiferenciada aos 40 anos.
Depois de muitos anos dedicados à música, como professora de Formação Musical no ensino artístico e na Escola Superior de Música de Lisboa, começou a ter sérios problemas a tocar nas aulas e foi fazendo a transição para a escrita. Com vários livros publicados e com um interesse especial na formação da escrita e da leitura, acabou por abandonar o ensino da música, dedicando-se agora a esta nova área. Fundou, com Isabel Peixeiro, o projeto Re-Word-It, trabalhando com crianças e professores, levando a escrita e a leitura mais longe. Gosta de ler, de escrever canções (letra e música), de aprender.
Casada, com dois filhos adultos, participa na vida associativa da LPCDR, tendo recebido a informação sobre o concurso Edgar Stene num email geral. Dado que a pandemia lhe trouxe uma nova visão sobre o seu trabalho e a possibilidade de sofrer menos mantendo uma vida ativa, este texto relata essa passagem e tudo o que ela implicou.